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Por que a conta do transporte público nunca fecha?

15/01/2018 | Geral

 

O reajuste da tarifa de ônibus da Região Metropoli­­tana do Recife (RMR), que voltou à tona nesta se­­mana, parece seguir um script em que todos os atores têm papéis bem definidos a cada 12 meses. As empresas de ônibus alegam perdas, usuários reclamam que não podem arcar com tarifas mais altas e o Estado, por meio de seus representantes no Conselho Superior de Transporte Metropolitano (CSTM), costuma conceder um aumento menor e compensa com a injeção de recursos públicos a diferença entre a tarifa que o passageiro paga e a que realmente seria necessária para cobrir os custos do sistema. Mas, com tanto dinhei­­ro em jogo - saindo do bolso da popu­­lação ou dos cofres públicos -, por que os ônibus seguem sem cum­­­prir todas as viagens, sem confor­­to e superlotados? A reflexão pe­­­­­lo que se paga e pelo que se rece­­be é a pauta incômoda que ressurge todo mês de janeiro e cujo debate pre­­cisa ocorrer de maneira mais frequente no Brasil, na visão de es­­­pecialistas, gestores e pessoas que lutam por um transporte públi­­co mais justo.

Até agora, só duas propostas vieram a público. A das empresas operadoras foi de um reajuste de 11,02%, o que elevaria o anel A, usado por 84% dos passageiros, de R$ 3,20 para R$ 3,55. A do conselheiro Márcio Morais, que representa a categoria estudantil, deve ser de aumento zero. A reunião dos 24 integrantes do CSTM para definir o assunto ocorreria na sexta-feira, mas foi adiada pelo Governo do Estado após a Justiça solicitar explicações técnicas e questionar a legitimidade do conselho. A população começará a semana na expectativa de quando e quanto terá que desembolsar a mais para uso do transporte, já que uma nova reunião segue sem agendamento.

Subsidiar o transporte por ônibus é algo consolidado nos países desenvolvidos, mas, no Brasil, é uma prática relativamente nova, segundo especialistas. São Paulo é um exemplo clássico do modelo. Tem 15 mil ônibus em circulação - no Grande Recife, são cerca de 2,7 mil -, com tarifa a R$ 4, para atender cerca de 2,5 milhões de usuários. Mas a prefeitura paga caro para compensar a diferença. Até o fim de 2018, a projeção é de R$ 3,1 bilhões. Já no Grande Recife, em 2016, foram anunciados R$ 149 milhões anuais em subsídios. Como a Secretaria das Cidades informou na época, foi isso que viabilizou aumentar o anel A de então para R$ 2,80, embora, tecnicamente, ele ti­­vesse que ter chegado a R$ 3,10. Ou seja, o passageiro passou a pagar R$ 2,80 ao girar a catraca, e o Go­­verno arcava com os R$ 0,30 res­­tantes por meio de subvenções. Só que esse valor não para de subir, atingindo R$ 200 milhões e, em 2017, R$ 240,5 milhões/ano.

“Transporte público urbano de qualidade é muito caro. E a nossa história mostra que o transporte por ônibus brasileiro tem sido custeado sempre exclusivamente pelo usuário, que é integrante das parcelas menos abastadas da população. Ou seja, é uma conta que não vai fechar nunca se você mantiver o transporte apenas dependente das tarifas cobradas”, avalia o coordenador regional da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), César Cavalcanti.

O problema, explica o especialis­­ta, é que muitas cidades ainda não conseguem subsidiar o transporte. Ou seja, sobra tudo para o bolso dos passageiros, que não têm como arcar com uma tarifa muito alta e, no fim das contas, o sistema fica dese­­quilibrado. Para reduzir custos, as em­­presas deixam de renovar a frota e reduzem o número de ônibus em circulação. Com coletivos mais velhos e em menor número, o trans­­porte perde qualidade e não é atrativo. Quem pode, o troca por um carro. Quem não pode, mas consegue absorver a tarifa, o usa fazen­­do queixas. Quem não dá conta de pagar acaba recorrendo à mobi­­lidade a pé, por bicicleta ou moto. 

 “O poder público não investe, os insumos vão tendo aumento, a demanda de passageiros caindo, e a gente fica nesse ciclo perverso. O usuário enfia a mão no bolso para pagar a passagem que aumentou e reclama com razão, porque o salário não aumenta”, resume o presidente executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Otávio Cunha. “De 1999 a 2017, o óleo diesel, que é o que move o transporte urbano e de mercadorias, teve aumento de 454%, a inflação, de 219%, e a gasolina, de 259%. Ou seja, a gasolina com alta menor que a do diesel não deixa de ser um incentivo ao transporte individual [por carro], o que, aliado aos congestionamentos e à falta de investimentos em faixas seletivas para os ônibus, tem gerado uma concorrência predatória. Nos últimos 23 anos, temos perdido passageiros, e de 2014 para cá, houve queda de 18,1%”, detalha Cunha.

As empresas de ônibus estão no rol das que defendem subsídios para o transporte juntamente com entidades como a ANTP e a Frente Nacional de Prefeitos (FNP). Uma ideia é criar a Contribuição de Intervenção do Domínio Econômico (Cide) Municipal, debatida em comissões na Câmara dos Deputados e sujeita a ir a plenário neste ano. Seria uma taxação sobre combustíveis direcionada a fundos controlados pelas prefeituras exclusivamente em prol do transporte público, tanto na cobertura de custos - e, consequentemente, ajudando a passagem a não subir -, como na execução de melhorias, a exemplo de corredores de ônibus. A proposta não é unanimidade por ser, na prática, uma forma de fazer com que os usuários de carros financiem o transporte público via pagamento de imposto na hora de abastecer.

 “Você pode ter o seu plano de saúde, não usar o SUS [Sistema Único de Saúde], mas paga impostos para que o serviço esteja disponível para todos. Você não estuda em escola pública, mas paga para que a escola esteja à disposição de todos. A gente acredita que um novo modelo de transporte também é necessário, com a sociedade como um todo sustentando-o, mesmo sem usá-lo, porque todos o têm à disposição”, reflete Pedro Josephi, integrante da Frente de Luta pelo Transporte Público (FLTP) e defensor da tarifa única na RMR.


“Caixa-preta”

A desconfiança sobre a contabilidade do setor também aquece o debate sempre que se fala de aumento de tarifa. Apesar de serem favoráveis a subsídios para o transporte, entidades ligadas à sociedade civil criticam o fato de o poder público colocar cada vez mais dinheiro nos sistemas sem que o retorno seja sentido por quem usa os ônibus, na forma de melhorias. O pedido para que se abra a “caixa-preta” das empresas é um discurso comum, até mesmo de prefeitos que assumem uma imagem mais combativa em relação ao tema.

No Grande Recife, não é diferente. Dos 24 conselheiros do CSTM, oito são da sociedade civil. Parte deles reclama que o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros (Urbana-PE) apresenta, todos os anos, planilhas apenas com as despesas. “Para saber se um sistema é deficitário, você tem que saber quanto ele arrecada. Mas as empresas de ônibus, todo ano, mostram só os gastos, sem indicar a receita. Nem o Governo tem acesso a isso”, questiona Pedro Josephi, da FLTP, lembrando que, conforme os dados apresentados pelo Grande Recife Consórcio de Transporte, as empresas adquiriram 87 veículos a menos, em 2017, em relação ao que haviam acertado. A Urbana-PE não comentou o assunto.

Em Porto Alegre, uma intervenção da prefeitura nas empresas de ônibus ficou famosa entre os anos 80 e 90. Em vez de só guardarem coletivos, as garagens das companhias de viação serviam a várias outras atividades - de criação de galinhas a supermercado. O sistema teve de ser recomposto, os ônibus velhos foram trocados e uma nova rede de transporte foi criada atendendo todos os bairros da cidade.

Em 2017, foi lançada uma planilha com o intuito de dar mais transparência ao transporte público, atendendo a pleitos das manifestações de 2013. “Antes era difícil a gente explicar qual era a taxa de lucro. A gente tinha uma taxa de 12% de remuneração de capital, mas não era discriminado o que era pagamento de investimento [em veículos, equipamentos, garagem] e o que era lucro. Com essa planilha, você tem isso diferenciado e definido numa matriz de risco da atividade. Cada município vai dizer o que vai pagar de lucro em função do risco. Se o reajuste é dado na data certa, o risco é zero. Se a cidade tem casos de ônibus incendiados, há um risco”, diz Otávio Cunha, da NTU.

 

Fonte:  Folha de Pernambuco

Tópicos
Brasil - NTU - mobilidade urbana - tarifas
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