Gratuidades: dói no bolso (dos outros) e gera injustiça social
13/03/2018 | Geral
Quem utiliza ônibus e paga para girar a roleta, em geral, não sabe que está bancando também a viagem de diversos grupos sociais contemplados com isenção total ou parcial da passagem. Estamos falando das gratuidades, benefícios concedidos a determinadas classes de usuários que, por força de leis ou decretos, tornam-se isentos do pagamento da tarifa do transporte público coletivo urbano. No Brasil, segundo o Anuário 2014/2015 da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), o número de passageiros que circula de graça ou com algum desconto aumenta cerca de 1% anualmente, com acréscimo de impressionantes 120 milhões de viagens a cada ano desde 2013.
A Constituição Federal de 1988 determina apenas uma gratuidade nos transportes coletivos urbanos: para maiores de 65 anos, prevista no artigo 230. Há, ainda, três legislações federais que concedem benefícios tarifários a carteiros, fiscais do trabalho e oficiais de Justiça Federal. Entretanto, como existe a abertura para que estados e municípios possam legislar sobre o assunto, atualmente são inúmeros os tipos de gratuidades, que variam de um local para o outro.
Entre os que mais impactam no setor estão os passes estudantis. Integrais ou parciais, os passes são concedidos principalmente a alunos dos ensinos fundamental, médio e superior, e estão sujeitos às regras e à realidade de cada local. Existem cidades que levam em consideração o critério econômico, de forma que só têm direito os estudantes com renda familiar pré-determinada, e outras que estabelecem distâncias mínimas entre a casa e a instituição de ensino para que seja feita a concessão, por exemplo.
Mas a lista não termina aí. Hoje, é extensa a relação de categorias com benefícios previstos em leis, especialmente municipais. Entre elas estão bombeiros, oficiais de justiça, policiais civis e militares, agentes penitenciários, guardas municipais, fiscais das empresas de transporte, pessoas com necessidades especiais e seus acompanhantes. Em algumas cidades, há até datas especiais em que é obrigatória a concessão de passe livre, a exemplo de dias de vacinação e celebrações de santos padroeiros locais.
“As gratuidades e os benefícios tarifários têm impacto direto no custo do sistema de transporte público urbano, pois, na grande maioria dos casos, as legislações estabelecem o direito, mas não indicam fontes para custeá-lo. Assim, o cálculo do preço das tarifas leva em conta somente os passageiros pagantes, de forma que o serviço é ofertado para a totalidade de pessoas, mas apenas parte da sociedade arca com os custos. Isso significa que, quanto mais gratuidade houver, sem fonte de custeio, mais caro será o transporte para a população comum”, lamenta o diretor administrativo e institucional da NTU, Marcos Bicalho.
Transporte caro, desigual e sem qualidade
Levantamento realizado pela NTU em 28 cidades mostra que o impacto dessas gratuidades nos custos da tarifa chega a 18%, em média, no país. Em outras palavras, a tarifa para usuários pagantes poderia ser reduzida em quase um quinto do valor se houvessem outras fontes que cobrissem esse impacto. Boa parte dos municípios sequer prevê subsídios para custear esses benefícios. Dessa forma, as tarifas ficam mais caras e o sistema, engessado em termos de investimentos em infraestrutura e melhorias no serviço. Mesmo as cidades que destinam recursos públicos para arcar com as gratuidades enfrentam, muitas vezes, problemas com a demora nos repasses ou recursos insuficientes para cobrir todos os custos envolvidos.
E, claro – como não poderia deixar de ser –, quem mais sofre com isso é a parcela mais pobre da população. Isso fica comprovado na Pesquisa Mobilidade da População Urbana 2017, realizada pela NTU em parceria com a Confederação Nacional do Transporte. Segundo o estudo, 59% da população se desloca diariamente. Desse total, 69,8% são das classes C e D/E, enquanto 27,3% ocupam a classe B e 2,9%, a classe A. “A gratuidade sem fonte de recurso significa, na prática, que os mais pobres é que estão bancando essa política social do governo”, observa Marcos Bicalho.
Para piorar o que já não está bom, há uma tendência forte, no Brasil, de ampliação da faixa etária de idosos com direito à gratuidade, com o objetivo de contemplar também aqueles com idade entre 60 e 64 anos. Em 22 de dezembro do ano passado, a NTU fez um levantamento que revelou um total de 62 cidades com gratuidade a partir dos 60 anos. Não há como saber quantas pessoas estão sendo efetivamente beneficiadas, já que, entre as cidades que implantaram a modalidade ampliada, 23 não possuem cartão específico para esse fim e não controlam o acesso de idosos, 22 trabalham com cartão próprio e apenas 17, além de cartão, fazem controle da quantidade de pessoas contempladas.
Em Aracaju, foi aprovado por unanimidade, em 19 de dezembro, no apagar das luzes de 2017, o Projeto de Lei 102/2017, que inclui a gratuidade para essa parcela da população. Apoiada no artigo 39 do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2013) – que além de assegurar os maiores de 65 anos, abre a possibilidade de legislações locais incluírem pessoas com 60 a 64 anos na lista de beneficiados. A proposta de Aracaju ainda precisa de aval do prefeito para entrar em vigor.
Em Brasília, a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou a medida, em dois turnos, também em dezembro passado. Por ser uma emenda à Lei Orgânica do DF, não depende da aprovação do governador. Para o diretor Nacional do Instituto Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade (MDT) e diretor do Instituto da Mobilidade Sustentável (Rua Viva), Nazareno Stanislau Affonso, a ampliação da faixa etária é inoportuna. “Apenas parte da população paga pelas gratuidades, isso representa mais peso. São injustiças sociais que perduram no país há muito tempo. A gratuidade virou, na verdade, um capital político, uma espécie de moeda de troca. Quem propõe um benefício como esse, normalmente, deseja e recebe um retorno da sociedade”, critica o urbanista.
Além disso, as propostas para incluir idosos com idade entre 60 e 64 anos entre os beneficiados nada contra a maré do desenvolvimento do país. Isso porque a expectativa de vida dos brasileiros tem crescido vertiginosamente ao longo dos anos. De 1940 a 2016, aumentou em 30,3 anos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), chegando a 75,8 anos em média, conforme dados de dezembro do ano passado. As melhorias em campanhas de saúde e em saneamento básico estão entre os fatores que contribuíram para a evolução. Assim, as pessoas estão vivendo mais, se cuidando mais e trabalhando por um prazo prolongado, de modo que não se justifica a concessão ao grupo – que reúne muitas pessoas ainda ativas economicamente.
Marcos Bicalho também é contrário à redução da faixa etária. “O Brasil acaba regredindo, pois, ao mesmo tempo em que aumenta a expectativa de vida, começa a conceder vantagens à população cada vez mais cedo. Esse é um fator negativo, tanto na questão da justiça social, por jogar o custo dessa benesse nas costas da parcela mais pobre da população; quanto por oferecer um benefício desnecessário em termos de assistência ao idoso. A qualidade de vida está aumentando e as pessoas estão vivendo mais. Não há sentido nisso”, ressalta.
“Pendura na conta do cidadão!”
Lendo, assim, o título acima causa a sensação de algo injusto e errado. Mas, quando o assunto são as gratuidades e demais benefícios tarifários, é exatamente assim que o jogo funciona. Em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, não há subsídios para custear os passes livres, que não são poucos. De janeiro a novembro de 2017, a média mensal de passageiros do transporte público foi de 22.203.628. Dentro desse total, as gratuidades somaram 7.927.016. Um impacto de 35,64% na tarifa, segundo a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), responsável por regular e fiscalizar o trânsito e os transportes no município.
São idosos acima de 65 anos, idosos entre 60 e 64 anos, pessoas com necessidades especiais e seus acompanhantes, carteiros, oficiais de justiça, policiais militares, estudantes de todos os níveis de ensino, fiscais da EPTC e guardas municipais, além de datas especiais nas quais o trânsito livre nos ônibus é obrigatório, como dias de vacinação, feriado de Nossa Senhora dos Navegantes e períodos de eleições municipais e do conselho tutelar.
O que não falta na capital gaúcha são gratuidades – e isso porque já houve revogação de algumas. Por outro lado, faltam subsídios para pagar essa conta, que, é claro, não fecha. Na cidade, há uma tarifa única, que atualmente custa R$ 4,05. Sem as isenções, adivinhem qual seria o valor da passagem? Quem responde é o coordenador de regulação de transportes da EPTC, Márcio Saueressig: “Sem os benefícios, a economia seria de R$ 1,40, ou seja, os usuários pagariam R$ 2,65 para se deslocar. O único aporte que temos é do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, o ISS, do qual a prefeitura abriu mão em 2013, e desde então vem sendo usado. Se não fosse isso, a passagem seria 10 centavos mais cara, fecharia em R$ 4,15”.
Mas não é só a população que responde pelo prejuízo. Em Porto Alegre, o sistema de transporte público coletivo é composto por 501 linhas, nas quais operam 1.656 ônibus (dados colhidos em novembro de 2017). As empresas operadoras também sofrem com essa distorção pois a população tem uma capacidade de pagamento e quando a tarifa sobe a demanda cai. “Há empresas com déficit operacional. O que diminui um pouco os impactos é a venda antecipada de tíquetes, já que as pessoas abastecem seus cartões para uso durante todo o mês. Isso gera uma receita”, pondera Saueressig. “A verdade é que a gratuidade deveria existir apenas para quem realmente precisa, com cálculo conforme a renda da pessoa ou da família. Aqui, estamos encaminhando uma série de projetos para a Câmara a fim de limitar. Já há comissões avaliando”, acrescenta.
Subsídio: mais ou menos com ele, pior sem ele
São Paulo é a cidade com maior subsídio tarifário do país. Por lá, são concedidas gratuidades a idosos acima de 65 anos e com idade entre 60 e 64 anos, pessoas com deficiência e estudantes de baixa renda. Apesar da lista mais enxuta de categorias, a demanda é grande: a média, por dia útil, é de 9,6 milhões de passageiros transportados, sendo que, destes, cerca de 25% circulam atualmente sem pagar. Os dados são da São Paulo Transportes S.A. (SPTrans), que faz a gestão do transporte público no município, reunindo 15 mil veículos em mais de 1,3 mil linhas.
Em 2017, foram destinados cerca de R$ 2,9 bilhões em subsídio ao transporte coletivo na cidade. Para 2018, o orçamento municipal aprovado para este fim é de R$ 2,1 bilhões. No entanto, o valor pode vir a sofrer alterações, conforme reajustes de contratos, medidas para redução de custos, entre outros. No município, se os recursos para bancar os benefícios tarifários fossem divididos apenas entre os passageiros pagantes, o custo da tarifa do sistema de transporte coletivo municipal – incluindo aí investimentos em infraestrutura – seria de R$ 6,65. O cálculo, divulgado em planilha no site da SPTrans, é referente a dezembro de 2017, quando a tarifa custava R$ 3,80. Ou seja, não leva em consideração o valor atual da passagem, reajustado em 7 de janeiro de 2018 para R$ 4,00 – um aumento de 5,26%.
O presidente do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo (SPUrbanuss), Francisco Christovam, considera o subsídio repassado importante, porém insuficiente. “Nem sempre o valor cobre todos os custos das gratuidades, e isso impacta nos demais gastos das empresas, diretos e indiretos. As operadoras precisam ser muito eficientes pelo menor preço possível. Nas cidades onde as gratuidades são bancadas pelas empresas, então, há uma completa distorção do processo. É um erro e precisa parar”, defende.
Resolvendo os impasses
Diante do problema, torna-se fundamental uma discussão consciente e lúcida sobre as possíveis soluções para corrigir as distorções existentes, tanto na concessão das gratuidades quanto na ausência de fontes adequadas de custeio, que não onerem tanto a população usuária. Sobre os critérios para a criação dos benefícios, é unânime a conclusão de que é preciso se guiar pelo fator necessidade. É beneficiar idosos e estudantes que realmente não tenham condições de arcar com os custos do transporte. Uma das opções é a definição de uma renda familiar máxima.
Para o diretor Nacional MDT e diretor do Rua Viva, a questão financeira deve ser levada em consideração em todos os casos. “Mesmo para as gratuidades federais, precisa discutir isso. Em um país com tanta desigualdade em termos de renda, não é justo o usuário subsidiar o filho da pessoa que é rica, o idoso que é rico. Tenho mais de 65 anos e não acho justo que eu não pague a tarifa, pois tenho condições de pagá-la”, pondera Nazareno Stanislau Affonso.
E, uma vez que as gratuidades são idealizadas, é essencial definir e prever, ainda nos projetos de lei, a origem dos recursos que garantirão os benefícios. A inserção desses valores no orçamento público, conforme o perfil dos beneficiários, é a sugestão mais defendida. “Se o estudante de baixa renda não deve pagar a passagem, o que o transporte tem a ver com isso? A fonte para custear as viagens dele deveria vir da área de educação. Educar não é só ministrar aulas, é preciso assegurar que o estudante chegue às escolas, como já ocorre em programas que contemplam áreas rurais. O idoso se encaixa no âmbito assistência social, assim como os atletas estão ligados a esporte e lazer. Todas as tentativas de gratuidades que assistimos por aí, algumas delas bem absurdas, não são do transporte. Quem tem que bancar a gratuidade é o setor que responde por aquela parcela da população, para que o transporte possa fazer o que é, de fato, sua competência: transportar as pessoas de um lugar a outro”, sentencia o presidente do SPUrbanuss, Francisco Christovam.
O diretor administrativo e institucional da NTU, Marcos Bicalho, reforça: “Temos de continuar insistindo para que esses valores estejam no orçamento público. E não podemos permitir que o legislador dê a gratuidade sem definir de onde vai sair o dinheiro. Sabe aquela máxima de que não existe almoço grátis? Sempre haverá alguém pagando a conta e, nesse caso, está caindo nas costas da população mais carente, formada justamente pelos usuários do transporte público. O transporte coletivo, como serviço público essencial, não pode financiar outras políticas públicas das áreas de educação, assistência social e saúde, que têm orçamentos próprios.
Impacto das gratuidades nas tarifas de 20 capitais